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A mulher que escreveu a Bíblia

A beleza feminina é costumeiramente venerada e explorada em todos os veículos de comunicação, a ponto de provocar na sociedade um comportamento machista capaz de impor a beleza como algo necessário para a sobrevivência da mulher.

E isso não é bom, principalmente quando a vítima não se dá conta disso. Por isso uma passagem do livro A mulher que escreveu a Bíblia, obra de Moacyr Sciliar, me chamou atenção. Antes de tudo…

Sinopse | A Mulher que Escreveu a Bíblia

A Mulher que Escreveu a Bíblia é um romance histórico do escritor brasileiro Moacyr Scliar, publicado originalmente em 1999.

O livro conta a história de uma mulher chamada Diná, que viveu na Babilônia durante o período do exílio dos judeus. Ela é uma escriba, ou seja, uma pessoa responsável por escrever e copiar documentos importantes.

Diná é uma personagem fictícia, mas o livro é baseado em fatos históricos e traz diversas referências à vida dos judeus durante o exílio babilônico.

A história é narrada por meio de uma série de cartas que Diná escreve para sua neta, relatando suas experiências e reflexões sobre sua vida e seu papel como escriba.

O livro aborda temas como a relação entre os judeus e os babilônios, a importância da escrita na cultura judaica, a condição da mulher na sociedade antiga e a luta pela liberdade e pela identidade cultural.

A Mulher que Escreveu a Bíblia é uma obra rica em detalhes históricos e literários que oferece uma visão única sobre um período importante da história da humanidade.

Desabafo da protagonista quando, pela primeira vez, viu sua imagem refletida em um espelho:

Eu não podia acreditar no que estava vendo. Meu Deus, sou essa aí? Não havia ali nenhuma simetria, naquela face, nem mesmo a temível simetria do focinho do tigre; eu buscava em vão alguma harmonia.

Não era a grande harmonia das esferas que eu pretendia, um pequeno ser harmônico já me seria suficiente, mas nem isso eu obtive porque havia um conflito naquele rosto, a boca destoando do nariz, as orelhas destoando entre si.

E os olhos, que poderiam salvar tudo, eram estrábicos, um deles mirando, desconsolado, o espelho, o outro com o olhar perdido, fitando desamparado o infinito, talvez para não ter de enxergar a cruel imagem. Detalhe (mas ainda é preciso detalhar?

É, sim, é preciso ir ao detalhe, é preciso descer até o fundo do melancólico poço): sinais. Disseminados pela face, eu tinha – não contei, mas acho que duas dezenas é uma estimativa até conservadora – sinais.

Sinais às pencas, um despropósito de sinais, um surto inflacionário de sinais. Pela variedade, poderiam se constituir no objeto de um tratado de dermatologia. Havia-os de variado tamanho e matiz.

Um deles me incomodava particularmente; de tão protuso; era quese sessil, balançando desamparado no ar. A um vento mais forte, e ventos fortes em nossa região não eram incomuns, se desprenderia e seria levado para longe dali.

Se caísse entre pedras feneceria, se caísse na areia do deserto feneceria, se caísse na cratera de um vulcão feneceria – e ele fenecendo eu só me alegraria, mas se caísse em terra fértil…

Se caísse em terra fértil germinaria, e sabe Deus que planta nasceria dali, que estranha árvore de galhos secos e retorcidos. Se a esse espécime dessem, mesmo que por intuição, o epíteto de árvore da feia, eu não poderia me queixar; o máximo que poderia fazer era tentar abatê-la na calada da noite.

Resumindo, era isso o que eu via: a) assimetria flagrante; b) carência de harmonia; c) estrabismo (ainda que moderado); d) excesso de sinais. Falta dizer que o conjunto era emoldurado (emoldurado! Essa é boa, emoldurado! Emoldurado, como um lindo quadro é emoldurado! Emoldurado!) por uns secos e opacos cabelos, capazes de humilhar qualquer cabeleireiro.

O que o espelho me mostrava era algo semelhante a uma paisagem estranha, atormentada, na qual os acidentes (acidentes: muito apropriado, o termo) geográficos não guardavam a menor relação entre si.

Uma catástrofe tinha ocorrido em minha face, um cataclisma que seguramente antecedera de muito o meu nascimento; o que eu estava vendo era a feiura arcaica, a feiura ancestral, uma feiura consolidada pelos anos, pelos milênios, talvez.